
Fonte: Shutterstock.
Deseja ouvir este material?
Áudio disponível no material digital.
convite ao estudo
Você já parou para pensar o que é Educação Física? Talvez suas possíveis respostas estejam relacionadas às suas experiências e vivências práticas na área, como a Educação Física escolar, seu gosto e vivência nos esportes, as práticas de atividades físicas e saúde, os mais diversos tipos de jogos e brincadeiras que pôde praticar em espaços formais e não formais de ensino, as brincadeiras de rua que envolvem a cultura corporal etc. Conseguiu imaginar e compreender quantas práticas corporais direta ou indiretamente associadas à Educação Física estão presentes em sua história de vida, em sua formação como sujeito social, como cidadão?
Nessa perspectiva, já é possível compreender que a Educação Física é uma área que possui uma grande diversidade de possibilidades de campos de formação e atuação profissional. Essa diversidade também se materializa na natureza dos conhecimentos, saberes e áreas com as quais a Educação Física se relaciona, tanto para a produção como para a apreensão de conhecimentos relacionados às mais diversas áreas e objetos que constituem, historicamente, a Educação Física no Brasil. Mas, voltando à primeira reflexão proposta: o que é Educação Física?
Essa não é uma pergunta que se responda em poucas linhas, mesmo que por um conceito muito bem elaborado. A Educação Física precisa ser compreendida em toda a sua complexidade enquanto área de formação em nível superior. É assim que poderemos entender melhor a nossa área, nas perspectivas estruturantes do bacharelado e da licenciatura, em um processo de construção de conhecimento que busque caracterizar tanto a área como o profissional formado, apontando para algumas de suas possibilidades e desafios de atuação profissional.
Nesta unidade, o objetivo é a compreensão do que é Educação Física, do perfil do profissional ao conhecer as características do mercado de atuação profissional, analisando tanto os campos de intervenção profissional quanto as áreas de produção de conhecimento na área.
Diante dessa perspectiva, coloque-se diante do seguinte contexto: você se formou no curso de licenciatura em Educação Física no ano de 2013 e, desde então, atua como professor de Educação Física em uma escola particular, nas etapas do ensino fundamental II (do 6º ao 9º ano) e no ensino médio. Após 3 anos de atuação, especificamente no campo da educação básica com a disciplina da Educação Física escolar, você resolveu buscar uma ampliação de horizontes. Em conversas com outros colegas de turma, percebeu que muitos deles buscaram complementar a formação com o bacharelado em Educação Física, obtendo, assim, outra graduação. Com isso, você percebeu que possuir as duas formações, licenciatura e bacharelado, ampliava e potencializava a sua atuação no mercado de trabalho, podendo atuar em outros campos profissionais. Como sempre, você manteve interesse pelas práticas de atividade física e saúde, e viu nesse campo uma real possibilidade de intervenção e ampliação de horizontes pessoais e profissionais. Pensou e tomou a decisão: ingressou novamente na faculdade para fazer o bacharelado em Educação Física, se formando no final do ano de 2018. Assim, logo começou a trabalhar em uma empresa chamada Vida e Saúde, que presta serviço a empresas e pessoas físicas em diversos campos de atuação da atividade física, exercício físico e saúde. Dividido entre a atuação na escola e na empresa, conseguiu se organizar e se mantém entre esses dois mundos da intervenção, tendo a Educação Física como eixo central de sua identidade e vida profissional.
As discussões e conhecimentos que estruturam esta unidade são fundamentais para a resolução de diversos dilemas e situações-problemas que permeiam a atuação no campo da licenciatura e no campo do bacharelado em Educação Física.
Desse modo, a unidade está estruturada nas seguintes seções e temáticas: na primeira seção, O profissional de educação física, abordaremos conhecimentos sobre as definições e conceitos fundantes da área, assim como as perspectivas de formação na licenciatura e bacharelado, a cultura da prática e os debates sobre a nomenclatura (somos profissionais de educação física?). Na segunda seção, denominada Caracterizando a atuação do profissional de educação física, há a discussão sobre as áreas de atuação, as especializações reconhecidas pelo Conselho Profissional, o profissional da educação física como profissional da saúde e os processos legais e regulatórios dos códigos da profissão cadastrados na CBO. Na terceira seção, O mercado do profissional de educação física, abordaremos sua complexidade, sua natureza sazonal, o mercado multidisciplinar, o papel do profissional de educação física na sociedade e os usos das tecnologias no mercado de trabalho em Educação Física.
Praticar para aprender
Você já deve ter percebido como os temas e campos de conhecimentos da Educação Física fazem parte da sua vida, da vida das pessoas, do cotidiano e da sociedade. O gosto pelo esporte, a prática de atividades físicas e exercícios físicos, as brincadeiras e práticas corporais nas ruas, as manifestações da cultura do movimento nas praças e equipamentos públicos e privados de esporte e lazer, o desejo por adotar hábitos saudáveis, a preocupação com as dimensões estéticas corporais, os programas e canais esportivos, as empresas e produtos esportivos: tudo isso e mais uma infinidade de discursos e enunciados presentes no dia a dia configuram-se como objetos, áreas de conhecimentos, campos de atuação profissional em Educação Física, sendo necessária toda uma formação e apreensão de saberes de diversas naturezas (acadêmicos e profissionais) e diferentes áreas de conhecimentos (sociologia, história, fisiologia, biomecânica, administração, psicologia, educação, medicina, por exemplo).
É nessa multiplicidade de olhares e saberes históricos que a Educação Física brasileira se consolidou como área de formação no campo escolar e nos mais diversos contextos das práticas físico-esportivas. A compreensão das bases estruturantes da área é fundamental para a construção da sua identidade profissional, assim como para suas escolhas dentro da Educação Física em termos de campos de atuação.
Para nos aproximarmos da prática e aplicarmos os conteúdos desta seção, imagine que a Sociedade Comercial e Industrial de sua cidade realiza todos os anos uma grande Feira das Profissões com a participação de escolas da rede pública e particular. A sua escola, conhecendo sobre sua atuação no campo da licenciatura e do bacharelado em Educação Física, indicou seu nome para falar sobre a formação e o profissional de educação física para cerca de 200 alunos do terceiro ano do ensino médio que estão se preparando para o ingresso no ensino superior. Todos nós temos dimensão da importância das decisões tomadas quanto ao rumo profissional a ser adotado, ainda mais quando se é bem jovem. Portanto, você precisará falar sobre o que é a Educação Física, seus campos de formação e atuação na licenciatura e bacharelado, sua dimensão prática, que tanto cativa e motiva os alunos e profissionais da área. Sabendo da responsabilidade, você prepara uma intervenção ampla que pode ajudar esses jovens em suas tomadas de decisão, visando despertar o interesse pela Educação Física.
Quanto mais você se apropriar dos saberes e dimensões acadêmicas e profissionais da área, mais consolidará uma identidade de atuação profissional de qualidade baseada em saberes e procedimentos técnico-científicos.
Conceito-chave
A área da Educação Física, assim como os campos de formação profissional em nível superior, está de modo dinâmico se transformando de acordo com cada período sócio-histórico. É válido enfatizar que qualquer tentativa de reduzir a Educação Física a um simples e breve conceito é correr o risco de perder o todo, suas diversidades, suas lutas e embates epistemológicos. No entanto, a apreensão e construção do saber sobre a área é fundamental para sua apropriação e caracterização.
Definições e conceitos
Quando pensamos as dimensões conceituais da Educação Física brasileira, uma importante obra destinada a essa reflexão é o livro O que é Educação Física (1983), de Vitor Marinho de Oliveira. Em seu pensamento podemos encontrar importantes considerações sobre a Educação Física. Para esse pensador, o foco central da Educação Física seria o de estudar o homem em movimento. Assim, o jogar, o brincar, o dançar, as lutas e as mais diversas manifestações da cultura corporal presentes na sociedade, em seus distintos significados, como o lazer, a saúde, o esporte, são elementos de conhecimento e intervenção da Educação Física. Como demonstra o autor em sua obra, ações como a corrida, a natação e a dança já faziam parte das culturas dos povos primitivos, muitas vezes imbuídas de um sentido de sobrevivência.
Além da dimensão do movimento, a dimensão do corpo é algo central para a Educação Física. É o corpo, enquanto produto e produtor de cultura que manifesta o movimento, que faz emergir significado, símbolos, imagens e representações que se manifestam nos mais diversos campos de estudo e intervenção da Educação Física.
A compreensão do corpo na sociedade moderna está, ainda, relacionada ao pensamento dualista constitutivo da filosofia ocidental. O filósofo Platão, que exerceu forte influência nas estruturas da cultura ocidental, trazia em suas discussões sobre o corpo uma relação de dualismo, como o corpo sendo a prisão da alma, como um obstáculo ao que seria a manifestação do mundo ideal de bem e de verdade. No entanto, o corpo também era algo destacado como importante para a alma, pois o exercício seria o caminho para torná-lo forte, servindo como abrigo da alma.
Esse ideal se fez presente a partir de grandes eventos e marcos da sociedade moderna, como o Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, a Revolução Francesa (1789-1799) e a Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX, considerados grandes acontecimentos históricos que impactaram e criaram as estruturas para o surgimento e consolidação da sociedade moderna.
Nesse contexto da sociedade moderna, do racionalismo, com grande destaque para o desenvolvimento do ideal científico, das descobertas revolucionárias da ciência, o corpo passou a ser visto e reduzido a uma máquina, além de ser fragmentado e estudado em suas partes. Há no pensamento de René Descartes (1596-1650) um dualismo evidente entre corpo e alma, sendo o corpo a coisa material e o espírito a coisa pensante. Em sua clássica frase “Penso, logo existo”, Descartes considerava apenas o ato de pensar como condição da existência. Essa dimensão racional pode ser denominada como a essência do paradigma positivista/cartesiano que, durante muito tempo, foi hegemônico na sociedade.
Esse pensamento sobre o corpo está estabelecido nas próprias bases epistemológicas que deram origem à Educação Física, como nos modelos médico e militar presentes desde a sua origem, manifestados, principalmente, nas práticas dos métodos de ginásticas que surgiram na Europa, principalmente a partir do século XIX.
Assimile
A inserção da ginástica deu-se em meados do século XVIII como forma de preparação dos soldados da corte portuguesa. No entanto, o primeiro método a ser realmente balizador da prática da ginástica no nosso país foi o Método Alemão, ainda na primeira metade do século XIX. Por volta do ano de 1860, o Método Alemão é adotado de modo oficial pelo exército.
Assim, esse corpo visto a partir de um ideal mecanicista passou a ser controlado, moldado e trabalhado com a inserção da Educação Física nos currículos escolares a partir dos anos 1850, baseada nos métodos europeus de ginásticas, como o alemão, o sueco e, já nos anos de 1920, o método francês. Assim, desde seu surgimento, a Educação Física esteve relacionada a um ideal de educação corporal disciplinadora do corpo e do movimento, transmitindo sentidos e objetivos diversos, como a preparação militar, as dimensões médicas/higienistas e de saúde, as dimensões esportivas hegemonicamente relacionadas ao desempenho e ao rendimento, ao ensino da técnica esportiva, aos aspectos recreativos de modo alienante e disciplinador, como também aos padrões estéticos de corpo belo da sociedade contemporânea.
Assimile
Foi na Constituição Brasileira de 1937 que a Educação Física foi instituída como uma disciplina obrigatória na escola. O artigo 131 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, determinou a obrigatoriedade da Educação Física, atribuindo a essa prática a finalidade de promover o adestramento físico, a disciplina moral e preparar os cidadãos a cumprirem seus deveres para com a defesa da nação. Nesse período, a Educação Física foi concebida e concretizada como uma disciplina essencialmente prática. Os professores/instrutores acreditavam que a área deveria ter por objetivo a educação integral do indivíduo. Essa concepção integral significava desenvolver a formação física, moral e intelectual do homem. Se a educação passa a ser a responsável pela transformação da sociedade, ensinando valores e hábitos saudáveis, a Educação Física consolida-se como parte fundamental desse projeto de sociedade, trabalhando para a melhoria da saúde individual e coletiva. No entanto, ela ainda era concebida como uma “prática educativa” e não possuía o mesmo status das demais disciplinas escolares. Somente no ano de 1938 houve o reconhecimento da Educação Física como um saber de valor tão importante quanto o das outras disciplinas, devendo seus professores receber tratamento semelhante ao dispensado aos demais.
Os modelos de formação profissional existentes, baseados nos ideais médicos e militares, se mantiveram hegemônicos até meados do século passado, quando um fenômeno começa a surgir com força, o esporte. O esporte torna-se um grande fenômeno na Educação Física brasileira e, a partir dos anos de 1970, torna-se o conteúdo principal nos processos de formação profissional e atuação no campo escolar e fora da escola. Ao incorporar o esporte, também incorpora a prática pedagógica tecnicista, ancoradas nos modelos tradicionais de ensino, baseados na relação fragmentada com o objeto. A dimensão da dualidade do corpo é relacionada à área biológica, com a valorização da técnica, da tática e de modelos biomecânicos padronizados.
Reflita
Você já parou para pensar sobre como foi sua vivência na Educação Física escolar? Possivelmente, foi baseada no ensino dos esportes, principalmente os mais tradicionais e hegemônicos, como o futsal/futebol, o basquete, o handebol, o voleibol e o atletismo. Os cursos de formação profissional assumem a dimensão esportiva e seu ensino baseado na técnica, principalmente, a partir dos anos de 1970. O que houve foi a instituição de um binômio educação/esporte. Muito provavelmente, seu professor foi formado com base nessa visão de Educação Física, como o modelo de esporte de rendimento se concretizando nas aulas, que mais se baseia em treinos com repetições e ensino fragmentado, focado na gestualidade e padrão técnico, formação esportiva e valorização dos mais habilidosos. Fato é que, muito provavelmente, esses professores ensinaram a partir dos modelos que os formaram. Com todo o avanço da Educação Física a partir dos anos de 1980 até os dias atuais, com críticas a esse modelo tecnicista e com os avanços epistemológicos, acadêmicos e científicos da área que perspectivam uma nova forma de formação e atuação, cabe às novas gerações (re)construir os novos rumos da Educação Física brasileira. Bem-vindo, o desafio é grande e motivador!
Especificamente no campo da Educação Física escolar, o Decreto n. 69.450, de 1971, especifica a Educação Física como “a atividade que por seus meios, processos e técnicas, desperta, desenvolve e aprimora forças físicas, morais, cívicas, psíquicas e sociais do educando” (BRASIL, 1971, [s. p.]). O que se viu em decorrência de uma maior compreensão do papel da Educação Física no projeto educacional foi a materialização de uma prática voltada para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da aptidão física e do esporte (BRASIL, 1971).
No entanto, a década de 1980 se configura como um grande marco para a Educação Física brasileira. O campo se voltou de modo crítico para as práticas pedagógicas hegemônicas, para o tecnicismo como modelo único, e novos pensamentos, autores e atores colaboraram para novos caminhos para a área. Um dos fatores mais impactantes foi a constituição dos campos de conhecimento acadêmico-científico da Educação Física brasileira com a instituição dos primeiros cursos de pós-graduação em Educação Física.
Dimensões acadêmicas e profissionais da Educação Física
A partir dos anos de 1980, com a abertura política, a concretização de alguns acontecimentos no campo da pesquisa em Educação Física, como o retorno de muitos professores que foram se capacitar em nível de mestrado e doutorado fora do país a partir dos acordos MEC-USAID, a leitura crítica sobre a prática profissional e o papel da Educação Física na universidade e na sociedade, foram de grande impacto no campo da Educação Física.
Quanto aos acordos, durante as décadas de 1960 e 1970 o Ministério da Educação e Cultura brasileiro os firmou com a United States Agency for International Development, buscando criar e fortalecer o papel do Estado no desenvolvimento da ciência, principalmente na constituição do campo da pós-graduação. O objetivo dos acordos era reestruturar o sistema educacional brasileiro, desde a educação básica até o campo científico da pós-graduação. O retorno dos mestres e doutores brasileiros que realizaram sua capacitação fora do país, principalmente nas universidades norte-americanas, ajudou a compor o corpo docente dos primeiros programas de pós-graduação em Educação Física no Brasil.
Exemplificando
Foi na Escola de Educação Física da Universidade de são Paulo (USP) que se implementou o primeiro programa de nível mestrado em Educação Física, no ano de 1977; e, em 1989, o primeiro programa em nível de doutorado. Com o passar do tempo e a institucionalização do campo científico da Educação Física brasileira, o campo em nível de formação strictu sensu se consolidou e agora forma profissionais capacitados para o campo da docência e da produção de conhecimento sobre os mais diversos objetos e bases teóricas da área e demais áreas com as quais a Educação Física se relaciona.
Importante ressaltar que, até a década de 1960, a Educação Física era orientada para uma formação profissional cujo foco era apenas na atuação no campo escolar, busca, a partir da incorporação de um discurso cientificista, questionar se a Educação Física era uma disciplina científica ou profissional.
É nesse sentido que emerge a necessidade de realizar um processo crítico e reflexivo sobre a área: somos uma área profissional ou acadêmica? Produzimos pesquisa ou apenas consumimos saberes constituídos pelas áreas-mãe com que a área historicamente se relacionou, como a história, a educação, a fisiologia, a biologia, a psicologia, a administração, a filosofia, a medicina? Nossas ações profissionais são baseadas em saberes teóricos ou apenas na reprodução de técnicas e procedimentos? Existe teoria na Educação Física? A atuação eminentemente prática e técnica, sem uma base teórica nem um campo de produção de conhecimento justifica a Educação Física na universidade? Qual o nosso objeto de estudo?
Esses questionamentos estiveram no cerne do momento denominado crise de identidade da área nos anos de 1980 e impactaram a constituição do campo acadêmico científico da Educação Física brasileira. Logo, refletia-se sobre qual seria a identidade da área.
Foi Medina (1986), em sua obra A Educação Física cuida do corpo e... “mente”, que destacou a falta de uma identidade para a Educação Física, ainda incapaz de justificar a si mesma. Em sua obra, ele afirma a necessidade de a área entrar em crise, por causa do choque entre interesses diversos. Afirmava, ainda, que a realização plena dos profissionais de educação física só se daria quando assumissem seu papel como agentes renovadores e transformadores da realidade e da própria área.
Diante desse cenário de busca por uma identidade, é importante destacar para você um significativo embate entre duas grandes matrizes que buscaram compreender a área a partir de suas bases epistemológicas e ideológicas. Uma vertente/matriz que compreendia a Educação Física como ciência, ou seja, como área de conhecimento científico básico ou aplicado; e a outra vertente, que defendia a área como uma prática pedagógica, ou seja, uma prática social de intervenção.
Como principal representante da vertente científica da área, o professor Go Tani propôs a Cinesiologia enquanto estrutura organizacional e ideológica da Educação Física no Brasil, tomando como referência o movimento disciplinar ocorrido na Educação Física nos Estados Unidos a partir dos anos de 1964.
A proposta organizacional de Tani estava estruturada de modo hierárquico, apresentando uma área científica, a Cinesiologia, de natureza básica; e outra profissional, Educação Física, de natureza aplicada. Assim, a área da Cinesiologia estaria estruturada em três subáreas: Biodinâmica do Movimento Humano, Comportamento Motor e Estudos Socioculturais do Movimento Humano. Essas subáreas se voltariam para a produção e desenvolvimento do conhecimento científico, caracterizando a área como ciência de natureza básica. Já a Educação Física estava estruturada em duas subáreas, a Pedagogia do Movimento Humano e a Adaptação do Movimento Humano como áreas de conhecimento aplicado, responsáveis pelos aspectos pedagógicos e profissionais, a integração e a síntese dos conhecimentos produzidos pela dimensão acadêmica (TANI, 1989).
Uma das críticas feitas a esse movimento de criação de uma matriz científica na Educação Física foi a de que a incorporação de conhecimentos de outras áreas-mãe, de outras disciplinas científicas, levaria a um processo de fragmentação da Educação Física, que estaria mais voltada para os conhecimentos das áreas-mãe, como a sociologia, biologia, história, fisiologia etc. Poderia ocorrer a fragmentação da área de conhecimento, pois o foco central de interesse não seria os objetos da área, mas as disciplinas nas quais estariam fundamentadas suas pesquisas.
Exemplificando
Caro aluno, ao se lançar no campo da cientificidade, tomando como referência os saberes de outras áreas, o que de fato ocorre na Educação Física por um longo processo histórico de sua constituição, os objetos e recortes de pesquisas poderiam ficar tão fragmentados e especializados que não seria possível estabelecer relação direta com a área, principalmente com o campo de intervenção profissional, melhorando a prática profissional a partir de uma base científica. Isso acarretaria no afastamento entre o campo científico e o profissional.
Na matriz pedagógica encontramos os ideais e as propostas de Bracht (1992; 1995). Para esse importante nome da Educação Física brasileira, o termo Educação Física estaria diretamente relacionado às atividades pedagógicas desenvolvidas, historicamente, nos contextos educacionais e escolares, ou seja, seria uma prática pedagógica tendo como foco principal o movimento corporal, a ludomotricidade humana, propondo termos como cultura corporal ou cultura de movimento enquanto objetos da Educação Física.
Identificando-se com as dimensões da cultura corporal, da cultura de movimento ou cultura corporal de movimento, a própria dimensão do movimentar-se humano passa a ser compreendida como uma forma de comunicação, sendo produto e produtor de cultura, uma linguagem. Assim, o objeto de estudo da área seria aquilo que é necessário para tratar da prática pedagógica.
Fato é que toda essa dimensão crítica e de crise de identidade, suas diferentes vertentes e caminhos para a Educação Física, colaborou, nos últimos 40 anos, com o processo de criação de uma base de conhecimento para a superação da dualidade teoria e prática. O viés predominante, puramente prático, do fazer pelo fazer, uma prática pedagógica e de intervenção neutra, vazia, sem uma base teórico-científica que a sustentasse, vem sendo superado pela produção de uma base de conhecimento acadêmico-científico na área. Hoje podemos compreender a Educação Física como um setor de intervenção profissional que possui um campo científico que produz conhecimentos, muitos deles voltados para os problemas profissionais encontrados no cotidiano de trabalho, formando um profissional crítico e autônomo, capaz de mobilizar as bases teóricas em seus contextos de atuação.
Bacharelado e licenciatura
Você possivelmente já deve estar pensando sobre como surgiu o bacharelado em Educação Física, não é?
As diretrizes normativas e os currículos de formação em Educação Física passaram por muitas mudanças nesse quase um século de formação em nível superior. Cada período histórico oferece aspectos políticos e ideológicos para a compreensão da formação em Educação Física. Durante quase todo esse período a formação em licenciatura foi o campo hegemônico de formação profissional.
O ano de 1987 foi um marco para a Educação Física como uma significativa mudança em suas estruturas de formação profissional. Se até então se formava o licenciado em Educação Física, a Resolução nº 03/1987 (BRASIL, 1987a), em conformidade com o Parecer CNE/CES 215/1987 (BRASIL, 1987b), estabelece duas formações: o bacharelado e a licenciatura. Como proposta, a licenciatura seria a área de formação responsável para formar o profissional que atuaria no contexto educacional, no exercício do magistério, no âmbito da Educação Física escolar. Já o bacharelado formaria o profissional que iria atuar fora desse contexto, como clubes, academias e outros com as mais diversas manifestações do movimento humano.
No entanto, o que houve na prática foi que muitas universidades optaram por continuar a oferecer a licenciatura generalista, preparando o profissional para atuar em todos os contextos de intervenção, tanto dentro quanto fora da escola. Poucas universidades no Brasil se lançaram no campo da formação em bacharelado, mesmo porque, com a não existência de uma regulamentação profissional, o licenciado poderia atuar em diversos contextos e, também, por uma falta de entendimento quanto ao bacharelado e seus contextos de intervenção, sendo áreas e campos de atuação que estavam em processo de consolidação na sociedade. E assim permaneceu até o início dos anos 2000.
O próximo marco significativo na (re)estruturação da área deu-se no ano de 2002. No dia 18 de fevereiro, a Resolução nº 1/2002 (BRASIL, 2002) foi homologada e mudou de modo significativo o campo de formação profissional em Educação Física. A referida resolução instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica. O que se buscava era uma proposta de formação com uma maior identidade do professor, da docência. Nesse contexto normativo, a licenciatura ganha uma dimensão própria dentro da formação em nível superior.
Na dimensão do bacharelado, a Resolução nº 7/2004 (BRASIL, 2004), que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Educação Física, acaba por orientar a construção de uma formação específica para cada área do conhecimento.
Um dos aspectos importantes a destacar é que tal legislação possibilitou uma maior autonomia das instituições de ensino superior na constituição de seus currículos, tendo como referência, por exemplo, as demandas da sociedade.
Nesse sentido, como você pode perceber, até então as formações nos cursos de bacharelado e licenciatura em Educação Física constituíam campo distintos de formação, intervenção e até mesmo de ingresso nas instituições de ensino superior.
Como a área é dinâmica, tal qual a sociedade, após alguns anos desse modelo de formação, a partir de um embate que mobilizou diferentes instituições representativas, foram aprovadas, em 3 de outubro de 2018, pelo Parecer CNE/CES nº 584/2018 (BRASIL, 2018), as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Educação Física. A mudança estrutural mais significativa está relacionada à formação profissional, com ingresso único, destinado tanto ao bacharel quanto à licenciatura.
Nesse novo contexto, o curso está estruturado em: a) uma etapa comum composta por quatro semestres de formação baseada nos conhecimentos gerais; b) uma etapa específica composta por quatro semestres em que os alunos terão acesso aos conhecimentos das opções em bacharelado, com atuação fora do contexto escolar, nas práticas de treinamento físico-esportivo, lazer, saúde, atividade física, gestão, recreação; ou licenciatura, com atuação no ensino básico.
Como você pôde perceber ao longo deste conteúdo, a Educação Física é uma área de formação e atuação profissional consolidada e seus campos de atuação estão bem demarcados nas dimensões do bacharelado e da licenciatura. Esse retrato representa toda a evolução, os dilemas, os conflitos e as lutas para fazer da Educação Física uma importante área de atuação na sociedade, nas mais diversas manifestações da cultura do movimento humano. Coloque-se de modo aberto para compreender a área e suas particularidades. Mas, acima de tudo, e como já percebeu, temos uma história, sólida e ampla base de conhecimento teórico acadêmico-científico que precisa ser apreendido em sua radicalidade na sua formação. Portanto, convido você a viver sua área, seu curso, suas escolhas.
faça valer a pena
Questão 1
O estudo sobre o corpo é algo presente na história da Educação Física. Os eventos marcantes que deram início à sociedade moderna materializaram um ideal de corpo-máquina. Esse corpo estava voltado para ser educado para o trabalho, privilegiando sua força de trabalho, algo fundamental para a sociedade industrial. Nesse sentido, esse corpo foi fragmentado e moldado de modo a manifestar esses valores hegemônicos que estruturam a sociedade moderna. A Educação Física, inserida no contexto educacional brasileiro a partir da segunda metade do século XIX, manifestava esse ideal em sua prática.
De acordo com sua relação hegemônica com o corpo e as práticas educacionais e corporais, quais ideais sustentavam a Educação Física como prática social e escolar?
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Correto!
A Educação Física, em sua origem na sociedade brasileira, estando também alinhada ao papel social que cumpria em países europeus, a partir dos métodos ginásticos voltados para a saúde física e o treinamento militar, estava baseada nos ideais médicos e militares, a partir de diferentes métodos ginásticos que foi incorporando ao longo de sua história.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Questão 2
O desenvolvimento acadêmico e científico da Educação Física, assim como a reflexão sobre sua prática pedagógica e papel social foram fundamentais para o momento de reflexão sobre a identidade da área. Na compreensão e debates acerca do objeto de estudo e da atuação profissional, podemos identificar duas grandes matrizes que orientavam as discussões.
As duas matrizes de conhecimento que debateram sobre o objeto e identidade da Educação Física são:
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Correto!
A duas vertentes mais impactantes nas discussões sobre a identidade da Educação Física brasileira são a ciência básica ou aplicada, proposta principalmente pelo professor Go Tani, com a proposta da Cinesiologia, tomando como referências as discussões do movimento disciplinar ocorrido na Educação Física norte-americana, deflagrado por Franklyn Henry; e a prática pedagógica, defendida pelo professor Valter Bracht, que via a Educação Física como uma intervenção pedagógica, cujo objeto de estudo e conhecimento deveria estar voltado para a construção dessa prática.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Questão 3
Ao longo do tempo, a formação profissional em Educação Física apresentou diversas mudanças, de acordo com aspectos políticos, ideológicos e profissionais relacionados às demandas sociais. Enquanto curso de formação profissional presente em instituição de ensino superior, a área está sujeita às mudanças direcionadas pelas diretrizes políticas e educacionais que configuram e regulam a formação profissional em âmbito nacional.
Em relação aos aspectos que envolvem os cursos de bacharelado e licenciatura em Educação Física, analise as afirmativas a seguir:
- A licenciatura ainda é hoje a área de formação predominante, podendo o licenciado atuar em todos os campos de atuação profissional.
- O curso de bacharelado surge depois da Resolução nº 1/2002, que determina as diretrizes para a graduação em bacharelado.
- O Parecer CNE/CES nº 215/1987 estabelece, pela primeira vez, a formação de bacharelado em Educação Física, compreendendo espaços não escolares como seu campo de atuação.
- A Resolução nº 1/2002 instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica.
- O Parecer CNE/CES nº 584/2018, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Educação Física, determina a formação em Educação Física, em licenciatura e bacharelado, com ingresso único no curso, uma etapa comum de 4 semestres e, depois, uma etapa específica de mais 4 semestres, sendo o bacharelado ou a licenciatura.
Sobre as especificidades legais e normativas da formação profissional em Educação Física, estão corretas:
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Correto!
A licenciatura, desde o ano de 1987, não é mais a única formação profissional possível. Fato é que, mesmo com a criação do bacharelado pela Resolução nº 03/1987, muitas instituições de ensino superior continuaram a oferecer apenas a licenciatura, o que muda com a Resolução nº 1/2002, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, cabendo à área ter que se adaptar em suas singularidades. Uma mudança ocorre novamente no campo com a aprovação do Parecer CNE/CES nº 584/2018, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Educação Física, determina a formação em Educação Física, em licenciatura e bacharelado, com ingresso único no curso, uma etapa comum de quatro semestres e, depois, uma etapa específica de mais quatro semestres, sendo o bacharelado ou a licenciatura.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
referências
BETTI, M. Educação física como prática científica e prática pedagógica: reflexões à luz da filosofia da ciência. Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v. 19, n. 3, p. 183-97, jul./set. 2005. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/268310303.pdf. Acesso em: 16 mar. 2021.
BRACHT. V. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cadernos Cedes, ano XIX, n. 48, p. 69-88, ago. 1999. Disponível em: https://bit.ly/3aX9ZBs. Acesso em: 16 mar. 2021.
BRACHT, V. Educação física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992.
BRACHT. V. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cadernos Cedes, ano XIX, n. 48, p. 69-88, ago.1999. Disponível em: https://bit.ly/3aZpqcr. Acesso em: 16 mar. 2021.
BRASIL. Conselho Federal de Educação. Resolução nº 03, de 16 de junho de 1987. Fixa os mínimos de conteúdo e duração a serem observados nos cursos de graduação em Educação Física (Bacharelado e/ou Licenciatura Plena). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 set. 1987a. Disponível em: https://bit.ly/3ufwCc9 . Acesso em: 20 abr. 2021.
BRASIL. Conselho Federal de Educação Física. Parecer CNE/CES nº 215, de 11 de março de 1987. Dispõe sobre a reestruturação dos cursos de graduação em Educação Física, sua nova caracterização, mínimos de duração e conteúdo. Brasília, 1987b. Disponível em: https://bit.ly/3nJkYn8. Acesso em: 20 abr. 2021.
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 10 nov. 1937. Disponível em: https://bit.ly/2RoIIAR. Acesso em: 21 abr. 2021.
BRASIL. Lei nº 69.450, de 1 de novembro de 1971. Regulamenta a Educação Física em todos os estabelecimentos e níveis de ensino. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 nov. 1971. Disponível em: https://bit.ly/2PNESRC. Acesso em: 20 abr. 2021.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 7, de 31 de março 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Educação Física, em nível superior de graduação plena. Brasília, 2004. Disponível em: https://bit.ly/3efnu1C. Acesso em: 20 abr. 2021.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Resolução nº. 1, de 18 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Brasília, 2002. Disponível em: https://bit.ly/3h3rpQL. Acesso em: 20 abr. 2021.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CES nº 584, de 3 de outubro de 2018. Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Educação Física. Brasília, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3nRiByY. Acesso em: 20 abr. 2021.
HENRY, F. Physical education: an academic discipline. Proceedings of the Sixty Seventh Annual Meeting of the National College Physical Education Association for Men, p. 14-17, 1964.
OLIVEIRA, V. M. O que é Educação Física. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
TANI, G. Perspectivas da educação física disciplina acadêmica In: II Simpósio Paulista de Educação Física. Anais do Simpósio Paulista de Educação Física. Rio Claro, 1989.
MEDINA, J. P. S. A Educação Física cuida do corpo... e “mente’’: bases para a renovação e transformação da educação física. Campinas: Papirus, 1986.